sábado, abril 15, 2006

Em Mértola ou noutro sítio qualquer

Um carro vem a descer a rua.
Um carro vem a descer a rua e quase preguiçosamente faz uma curva. Do seu lado direito as laranjeiras passam cadenciadas já em flor. É Abril e o calor no asfalto faz-se sentir como promessa dos meses que virão. Ao fundo da rua uma rotunda com oito colunas de tamanhos diversos dentro de uma fonte. Normalmente esguicha água de um cano que rompe do centro das colunas. Mas neste momento não. Estão secas. É princípio de tarde e os pássaros cantam sobre a vila. Cheira a flor de laranjeira e um vento suave lambe a folhagem verde escura.
Um carro vem a descer a rua. Sem muita pressa.

"Já não me amas." "Amo sim." Já não sorris para mim." "Claro que sorrio." "Dantes estavas sempre a sorrir. Agora já não." "Sorrio. Ainda sorrio." "Só sorris para o nosso filho. Só te vejo sorrir para ele." "Não é verdade." "Estavas sempre a rir-te. Com todas as parvoíces que eu dizia." "Não tens feito brincadeiras." "Deixei de as fazer porque tu deixaste de te importar." "Não é verdade, devias continuar." "Para quê?" "Alegra-me quando brincas comigo." "Não se nota." "Não sejas assim. Vem cá." "Tu não estás excitada." "Então excita-me."

Um carro vem a descer a rua.
Um carro vem a descer a rua e não vem depressa. No banco de trás, numa cadeira bem presa, está um menino. Tem pouco mais do que um ano. Está a olhar para as laranjeiras. Os seus olhos rolam em direcção à sua mãe. Abre a boca preguiçosamente, com sono e calor. Diz mãe.
Ela olha para trás com um sorriso surpreso estampado na cara. O seu filho falou pela primeira vez. Fica com o coração a rebentar de amor e ternura.
Um carro vem a descer a rua. Não vai depressa e aproxima-se de uma passadeira que antecede de imediato a rotunda.

"Antigamente, mal te tocava, os teus mamilos ficavam rijos." "Ainda ficam." "Olha… Não ficam." "Tem paciência." "E não tenho tido?" "Esforça-te um bocadinho mais." "Que mais tenho eu feito?" "Sim, tens-te esforçado." "Parece que tenho andado a fazer amor sozinho este tempo todo." "Porque é que insistes em dizer isso?" "É o que sinto." "Como é que queres que me sinta bem se sempre que vamos para a cama me acusas de não te amar?" "É o que sinto." "Preciso que me ajudes e compreendas." "Não me deixas ajudar-te." "Deixo, pois. Dá-me tempo." "Eu dou. Que remédio tenho eu." "Abraça-me." "Abraçar ajuda-te?" "Nem sabes quanto." "Continuas sem sorrir." "Eu sorrio. Eu sorrio".

Um carro vem a descer a rua.
Durante três segundos uma mãe olhou embevecida para o seu filho e para a primeira palavra que ele disse. Depois sentiu o embate do seu carro. Como uma coisa suave. Como um toque gentil no ombro. Olhou para a frente de repente, torcendo o pescoço com tanta força que lhe doeu. Uma camisa de alças cor-de-rosa, longos cabelos castanhos erguem-se no ar.
Os pés rápidos no travão tarde demais.
Uma sandália bate contra o capot do carro. A figura de uma rapariga cai e sossega sobre a passadeira.
Um carro vinha a descer a rua e agora está parado. Um bebé começa a chorar.

"Estás gelada. Estás gelada por dentro e por fora." "Aquece-me." "Como? Não sei como…" "Sabes. Tens de saber." "Explica-me." "Não sei. Mas és tu que tens de saber." "Ainda gostas disto?" "Gosto. Gosto muito." "E disto?" "Sim." "Não parece." "Mas tu continuas com isso?" "Desculpa." "Beija-me." "Se eu te beijar, fazes-me um favor?" "Sim." "Sorris para mim?" "Sorrio. Eu estou sempre a sorrir para ti. Mesmo que não se veja." "Mas eu preciso de ver." "Está bem."

Um carro vinha a descer a rua.
Um carro vinha a descer a rua e parou repentinamente com um guincho agudo e um cheiro a pneus queimados. Há uma rapariga caída sobre as listras pretas e brancas da passadeira. Casualmente a fonte começa a esguichar água. Um bebé chora. A mãe abre a porta do carro e tenta sair. Esqueceu-se de tirar o cinto. Enquanto o faz olha para trás. O seu filho está bem. Chora de medo apenas. Sai do carro com as pernas a tremer. Dirige-se para a rapariga enquanto várias pessoas também se aproximam. A rapariga parece estar a olhar para o céu.
Um carro está parado à beira de uma passadeira à beira de uma rotunda. Vinha a descer a rua.

"Não me sentes." "Sinto." "Mas não o demonstras." "Se não paras de falar, como é que queres que sinta?" "Ainda não sorriste." "Espera um pouco." "Espero. É o que faço sempre." "Não pares, por favor." "Eu não paro. Eu continuo." "Meu amor…" "Estás a chorar?" "Não é nada. Continua, não vá ele acordar." "Sorri, vá lá…" "Eu sorrio. Em breve eu sorrio." "Sorri, sorri, meu amor…"

Um carro vinha a descer a rua.Um carro vinha a descer a rua e já não se move. A polícia chegou. Alguém segura a mãe. Uma rapariga tirou o bebé do carro e embala-o, mas não o convence a calar-se. A mãe olha para a rapariga imóvel no asfalto. A rapariga que atropelou. Está morta. Um fio de sangue parou de escorrer-lhe pela boca abaixo. Os olhos fitam um céu que já não vê. A sua cara imobilizou-se com serenidade. Num sorriso.
Conto de
"Possivelmente Talisca"

2 comments:

At 3:24 da tarde, Anonymous Anónimo said...

@Talisca:

ñ percebi bem
q razão para ela ñ sorrir?

 
At 4:08 da tarde, Blogger Bayushiseni said...

O sorriso da rapariga morta não lhe permite sorrir. Penso eu...

 

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