segunda-feira, abril 17, 2006

Estranhas Criaturas sob os Céus de Mértola nº 14

Mértola tem cantos e esquinas com a magia dura da desconfiança, com certezas trazidas do inconsciente puro, feitas de acções escondidas, amores proibidos, desejos não autorizados. Mértola possui encantamentos criados por runas de desespero, desespero trazido à superfície pela diferença individual face ao olhar colectivo. Foi dessa magia de Mértola que nasceu a minha Samurai.

Foi numa noite de Janeiro que lhe vi pela primeira vez a guerreira no corpo e no espírito. Nada indicava que choveria nessa noite. Mas choveu. Sobre o seu corpo molhado, sobre a sua roupa encharcada, desenhava-se uma figura de armadura, as ombreiras feitas de bambu, o capacete dobrado para fora, e à cintura a katana e o wakisashi. Sorriu-me com a malícia de uma criatura mágica. Quis que eu visse o segredo que lhe crescera no corpo devido a ser diferente de tudo o resto. Um rubi. "Vês-me?" perguntou-me com os olhos. Acenei pasmado. Aproximou-se de mim, sussurrou-me ao ouvido, um sopro no meu pescoço molhado pela chuva não anunciada. "E que sou eu?" Saiu-me roucamente, a voz presa à garganta. "Uma samurai." E ela olhou-me surpresa. Não se via assim. Via-se com outra magia. Mas vemos coisas diferentes de nós quando nos olhamos ao espelho. Ri-me e coloquei os meus braços à volta da sua cintura. Assustou-se com o meu riso. E vi-a prender a sua mão na katana, receosa que também eu a tentasse levar para longe do seu caminho. A tentação chegou-me ao corpo, admito-o. E beijei-a. Como se beija uma Samurai. Com determinação, com a vontade do corpo e do espírito colocada numa só acção. Não vos posso dizer qual era a magia com que ela se via. Era muito forte e muito segura e também uma ilusão. Mas era só dela e não a partilho convosco.

Foi mais tarde, numa noite em que a chuva prometia cair mas não caiu, que a minha Samurai se ofereceu para me proteger com o seu corpo, para continuar quando eu tombasse, para receber todas as ofensas por mim. E eu aceitei. Injustamente, pois faltava-me pureza para tal devoção. Faltava-me honra para tal dignidade. Digo-vos desde já que não me faltava amor. O amor mudo e pasmado estava em mim. Um amor medroso também. Porque na sua pequena estatura, ela era muito grande para mim. Não a merecia e menti-lhe. Muito. Não se pode mentir a um Samurai, nem em Mértola nem em lado nenhum. Perdeu a honra que me tinha estendido a mim e perdeu uma grande porção da sua magia. A sua mão pequena e trémula agarrou no seu wakisashi, a espada curta que é a alma de um Samurai. Atravessou-se com ela e de seguida enterrou a katana no meu peito com a verdade na sua lâmina. Duas acções. Distintas. Seguidas. E vi-lhe o brilho desaparecer do corpo. As ombreiras caíram-lhe aos pés como as asas de um anjo ferido. Tirou o capacete para que as lágrimas corressem livres e enferrujassem as suas duas espadas brilhantes. Poderia ter acabado aqui. Poderia ter perdido o Samurai do seu corpo e eu poderia ter-me enterrado num buraco fundo, sujo na minha vilania. Mas uma Samurai não desaparece com facilidade. Luta contra o universo se tiver de o fazer.

Imaginem duas estranhas criaturas sob um céu de Mértola que promete chover mas não o faz. Uma delas disforme, apesar de ninguém o ver. Outra, uma guerreira sem medo, apesar de poucos quererem reparar. Entre eles um braço esticado e na sua mão uma katana, brilhando com a luz da lua. Feita de lua. Enterrada no meu corpo. "A minha arma vai desfazer-se. Corrói-se com a tua maldade. Mas eu amo-te à mesma. Perco honra por ti. Rebaixo-me." E o brilho à volta do seu corpo intensifica-se. Ela não vê, claro. As lágrimas enevoam-lhe a vista. E isto dito assim não me permite afundar-me na terra, desculpar-me. Atravesso-me na lâmina mais e mais até chegar a ela. Dói. Como nunca doeu. Mas vale a pena. Encosto-me ao seu corpo ferido apesar dos seus fracos protestos. A lâmina queima-me por dentro, desfazendo o meu mal. "Regresso a ti. Dá-me uma oportunidade." Digo-lhe a medo. "Já não tenho senhor. Tive-o por um bocado, mas já não tenho. Vaguearei por aí." E beijou-me. Com um amor tão intenso que me ardeu. Com uma dor tão viva, que me basta fechar os olhos para ainda a sentir. E as suas espadas derreteram, o seu capacete ainda está caído no mesmo sítio onde ela o largou. As ombreiras foram levadas pelo Guadiana até encalharem num canavial. Mas continua a andar como um Samurai. A minha Samurai que já não me pertence.


Habitam estranhas criaturas sob os céus de Mértola. Há uma Ronin que vagueia incerta, mas com as passadas seguras de uma Samurai. Há um homem que procura a honra que roubou à sua guerreira. Se a virem passar, olhem-na com respeito. Acenem-lhe com admiração. Já não há muita gente que se dê ao amor com a determinação que este merece. Já não há muita gente que seja ferida com a força de uma avalanche e se erga de novo, sangrando mas repetindo as suas palavras de amor. Em Mértola há uma Ronin, uma guerreira sem senhor que o fez. Que sorte que tem Mértola. Mas só eu vejo, mais ninguém. Sigo-a, como um vassalo que já foi senhor. Ela empurra-me para longe. Mostra-me as mãos vazias. "Hei-de encontrar a tua katana e o teu wakisashi." Ela ri-se e diz-me que se vai embora. Que Mértola já não lhe traz mais nada. Mentira. Há uma katana e um wakisashi em Mértola. Hei-de encontrá-los. Hei-de dobrá-los mil vezes com a maça do meu amor. Hei-de torná-los fortes de novo. E hei-de entregá-los à Ronin que já foi a minha Samurai. Mesmo que depois ela os ofereça a um outro senhor mais merecedor do que eu.

Notas:

Samurai - antigo guerreiro japonês, especialista na arte do sabre, seguidor de um estrito código de honra e servidor de um senhor feudal (daimyo); Do jap. samurai, «servidor do imperador».

Ronin – Samurai caído em desgraça, sem honra, condenado a vaguear pela terra.

Daisho – Conjunto de duas espadas, uma comprida, a Katana, e outra curta, o Wakisashi, que são as armas da honra e da força de um samurai.
Conto de
"Possivelmente Talisca"