quinta-feira, abril 20, 2006

À Mercê de Mértola

Quando é que um homem muda? Quando é que ele altera o seu carácter, que demorou tanto tempo a formar? E para quê? E porquê? São estas as perguntas que ele vai fazendo enquanto desce a rua, de um lado casas baixas, do outro o muro que o protege da queda em direcção ao Guadiana. Não que ele lá chegasse porque o rio ainda dista uns vinte metros da escarpa. Batia na rocha nua.
O homem pára, encosta-se ao muro, olha a paisagem salpicada de verde e de casas brancas, segue a linha do rio que o convida a espreitar para os salgueiros inclinados, a vegetação, as aves. Acende um cigarro distraidamente. Um carro passa por ele, o condutor olha-o fixamente, avaliando esta cara recente na vila. O homem já se habituou. Não é diferente de todos os outros. Este passou quase sem desacelerar. Alguns outros ensaiam perguntas, sondando. De onde vem? Fica por cá? O que é que faz? E o homem responde às vezes, mente noutras, mostra-se aborrecido umas raras vezes. Mas sabe que é assim. Que a curiosidade é humana e quantos menos seres vivem numa terra, maior a curiosidade se mostra.
Agora deita fora o cigarro. Desce mais um bocado. Aprecia mais uma vez a Torre do Relógio. O passado recente regressa-lhe à mente e puxa-o para o fundo de novo, não quer a recordação, não quer a dor. Mas as perguntas labutam dentro de si. Quando é que um homem muda? Quando tem que mudar, reponde ele. Quando é que altera o seu carácter? Se calhar nunca. Então como pode mudar? Nunca se esquecendo. Recordando-se sempre. Do que fez. Um homem é o que um homem faz.
Acelera o passo para que as perguntas fiquem para trás. Desce até à Praça da Câmara Municipal. Deixa-se ficar debaixo de uma laranjeira apreciando a frescura da sombra. Depois continua em frente. Pelas ruas estreitas e empedradas e tortas e torcidas de Mértola velha. É uma bênção ter que dar atenção a onde coloca os seus pés. As perguntas saem-lhe do espírito enquanto se concentra noutras coisas. Vai caminhando meio ofegante devido aos pulmões cheios de tabaco e ao calor que já se faz sentir. Leva um saco nas mãos.
E para que é que um homem muda? Para se acomodar à sua nova vida, diz para si o homem. Mas não está muito convencido. Ou porque já não se revê no que era, acrescenta. Mentira. Não será porque o que és te mete asco? Também, também. És um traidor. Sou.
Agora passa a ponte velha sobre a Ribeira de Oeiras. Bonita a ponte. Majestosa na sua velhice. Sobe em direcção ao estacionamento de terra batida. Ela vai estar lá. Vão trocar objectos pessoais. Que te dirá ela? Que a feriste. Que lhe colocaste uma ferida gotejante onde ela não pode fazer um penso. Que vai demorar a sarar e que tu és o culpado. Sou. Mas mudei, serviu-me de lição. Isso ainda ninguém sabe. Só tu e talvez nem isso. Mas disse-lhe a verdade. Que a minha traição também me mudou. Mas não fui a causa da mudança, dirá ela. Foi outra. E isso também dói. Também dói nem sequer ter essa consolação. Mas também foste. Mas não fui a principal razão. Foi outra. Aquela que tiveste nos teus braços quando deverias estar comigo. Não foste só tu, é verdade. Mas também não foi só ela. Não foi? Não, não. Foi Mértola. Mértola também foi a causa da minha mudança. Que consolo isso me dá. E vai-se aproximando do carro dela enquanto ensaia o diálogo. Pára e acende mais um cigarro para ganhar tempo e coragem.
Chega ao pé do carro dela. Apaga com um pé o cigarro na terra batida. Ela sai do carro. Olha-o. Pouco diz. Assina aqui. O homem assina. Trocam as coisas. Dizem adeus. Há perguntas nos olhos dela, mas não saem. É mais um castigo. De boa vontade lhe daria respostas. Mesmo que custasse. Ela põe o motor do carro a funcionar. Afasta-se lentamente. Acabou-se. Perdeste uma amiga, não o sentes? Sinto. És um traidor. Nunca mais serei. Vais mudar o teu carácter? Tenho de mudar. O carácter raramente muda, sabes isso? Não, não sei. Terei uma segunda natureza. Como é que sabes? Mértola. O que queres dizer com isso? Estou à mercê de Mértola. Porquê Mértola e não outro sítio qualquer? Não sei, há qualquer coisa em Mértola. Que coisa? Uma coisa dura, queimada pelo sol, às vezes má, mas verdadeira. Onde? Nos olhos desconfiados das pessoas.
O homem sobe em direcção ao Café Guadiana. Pede uma cerveja. Senta-se na esplanada. Passa um carro vermelho, com a cor queimada pelo sol. O condutor olha-o fixamente. O homem acena-lhe um adeus. O outro fica espantado. Levanta ligeiramente a mão em resposta. Faz a curva mais aberta do que devia. O homem bebe um golo da cerveja. Não usa o copo. Bebe da garrafa, pelo gargalo. O líquido queima-lhe a garganta, gelado. O homem tem um arrepio. Já não é o mesmo que era. Já nada é o mesmo. Mas sente-se estranhamente bem. Mértola entardece.

3 comments:

At 9:47 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Gosto. Chega? Gosto porque gosto.

MS

 
At 9:47 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Gosto. Chega? Gosto porque gosto.

MS

 
At 2:44 da tarde, Blogger Bayushiseni said...

Gosta? Chega. Chega porque chega. :)

 

Enviar um comentário

<< Home